M. Tobias-Machado, R. di Giuseppe, C.P. Barbosa, M. Borrelli, E.R. Wroclawski
Trabalho realizado pelas Disciplinas de Urologia e Ginecologia da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC)
INTRODUÇÃO
Endometriose é a presença de tecido endometrial ectópico e/ou estroma fora da cavidade uterina. Foi observada, pela primeira vez, por Rokitansky (1869) em material de necrópsia. Mais tarde, Sampson (1927) definiu a endometriose como um achado de tecido com aspectos histológicos e funcionais semelhantes ao endométrio tópico, em outros locais.
A endometriose é a segunda afecção cirúrgica ginecológica, perdendo apenas para a miomatose uterina. Nos EUA é a terceira causa de internação e a causa mais comum de histerectomia1.
Nos últimos anos têm-se verificado um aumento da freqüência de endometriose. Esse aumento se deve às mudanças de hábitos femininos; aumento da idade da primeira gestação, maior intervalo entre as gestações, o que promove maior tempo de exposição estrogênica e maior freqüência de menstruações.
A endometriose pode causar alteração da fertilidade, dor pélvica ou até ser assintomática. Possui estágios diferentes de evolução, podendo se apresentar de forma mínima, leve, moderada ou grave. As formas mínimas e leves podem se agravar com o passar do tempo2,3,4. Além disso, a afecção tem sua gravidade relacionada com a freqüência, quantidade e duração das menstruações.
ETIOPATOGENIA
Teoria do implante endometrial explica o aparecimento da endometriose em cicatriz de cesáreas ou após histerectomias.
Teoria da metaplasia celômica justifica o desenvolvimento da endometriose em mulheres com agenesia uterina.
A disseminacão por via hematogênica justifica as formas extraperitoneais.
A teoria do refluxo tubário do fluido menstrual ocorre com maior freqüência nos locais onde o fluido menstrual se deposita5.
Alguns autores sugerem a participação do sistema autoimune6,7,8. Acredita-se na diminuição da atividade de linfócitos denominados "natural killers" que agiriam contra antígenos endometriais autólogos. A diminuição da atividade dessas células estaria relacionada com a gravidade da doença9.
Recentemente, estudou-se a possibilidade de que a endometriose peritoneal e os nódulos endometrióticos no septo retovaginal fossem duas entidades distintas e foi proposto designá-las de adenomiose retovaginal10,11.
INCIDÊNCIA
A endometriose incide em 10% das mulheres entre 25 a 40 anos de idade. Acomete em até 50% mulheres inférteis12-16 e possui sua maior freqüência em nulíparas. Em assintomáticas pode incidir de 6%17 até 43%18.
Os locais mais acometidos são o fundo de saco de Douglas, ovários, ligamento redondo, tubas uterinas, cérvix, vagina.
Apenas 1 a 2% dos casos de endometriose acomete o trato urinário, sendo que a bexiga é acometida em 84% dos casos19 e, em seguida, o ureter. Na bexiga, as regiões mais freqüentemente acometidas são o trígono e o colo vesical. A tabela 1 mostra a freqüência de endometriose de trato urinário.
Como diagnóstico diferencial da endometriose vesical temos: angiomas, papilomas, inflamação ou úlcera vesical localizada e carcinoma infiltrativo.
QUADRO CLÍNICO
A natureza e a severidade dos sintomas vesicais variam conforme a localização, tamanho e duração do tumor (tabela 2).
O mais comum a ser encontrado é algia e desconforto supra púbico ou na região vésico-vaginal (78%), além de disúria, polaciúria, urgência miccional19.
A hematúria cíclica é encontrada em 25% dos casos, enquanto que distúrbios menstruais (dismenorréia, menorragia, metrorragia) foram encontrados em 50% dos casos20.
Em 40% das pacientes encontrou-se uma massa palpável ao toque vaginal.
EXAMES SUBSIDIÁRIOS
Tanto no estudo ultra-sonográfico quanto na tomografia computadorizada e ressonância magnética, o achado mais comum é vegetação endoluminal na parede vesical. A urografia excretora pode revelar falha de enchimento vesical ou hidronefrose se houver comprometimento ureteral21 (tabela 3).
A laparoscopia diagnóstica, realizada em casos de algia pélvica, pode localizar as lesões, inspecionar os órgãos pélvicos e toda a cavidade peritoneal permitindo a realização de biópsias.
A cistoscopia é o exame de preferência e seus achados variam conforme a fase do ciclo menstrual. Dessa forma, há necessidade de várias cistoscopias em diferentes fases do ciclo menstrual para um diagnóstico mais apurado20. Deve-se ressaltar, ainda, que o diagnóstico deve ser realizado através de biópsia profunda da parede vesical, geralmente conseguido através de ressecção com alça, pois biópsias superficiais podem revelar apenas cistites inespecíficas.
Período menstrual: pode ser detectado uma área elevada na parede vesical posterior, perto do trígono ou cúpula vesical. A mucosa vesical presente ao redor do tumor pode se encontrar congesta e edemaciada. Além disso, ainda na mucosa pode ser encontrado pequenos cistos transluscentes ou com aspecto azulado devido ao acúmulo de sangue.
Durante a menstruação: o tumor pode se apresentar com forma muito maior e mais congesto. As áreas císticas assumem aspecto azulado-enegrecido e menos translucente.
Após a menstruação: o tumor conserva sua área aumentada, mas a congestão e o edema são menos marcantes e o fluido enegrecido dos cistos ainda se mantém, mas com menor intensidade na coloração.
Período intermenstrual: o tumor regride de tamanho e somente alguns cistos com fluido azulado podem ser vistos.
BIÓPSIA TRANSURETRAL
Deve ser realizada em todos os casos onde há suspeita de endometriose vesical, pois ajudará a fazer diagnóstico diferencial com processos tumorais.
O material removido, caso seja superficial, pode apresentar diagnóstico de cistite inespecífica. Pode ser necessária ressecção com alça para permitir ao patologista uma quantidade suficiente de tecido com infiltração do epitélio endometrial.
ESTUDO ANATOMOPATOLÓGICO
O aspecto histológico é necessário para ser feito o diagnóstico definitivo.
A princípio, identifica-se glândulas e/ou estroma endometrial aderido à parede vesical que, num estágio inicial, pode estar confinada à serosa e, se não for tratada, progride para a camada muscular, submucosa e mucosa20. A lesão endometrial pode ser desde única até múltipla, em forma de placas até massas císticas grandes. Recentemente foi descrita a presença de adenomiose invadindo a bexiga como na endometriose de septo retovaginal
À inspeção nota-se superfície irregular com fluido enegrecido proveniente dos cistos que estão, na maioria das vezes, na superfície externa do tumor.
Na histologia encontra-se tecido endometrial infiltrado entre fibras musculares lisas da bexiga.
As glândulas podem estar preenchidas por sangue ou material necrótico. Raramente há degeneração maligna.
TRATAMENTO
A escolha da terapêutica para endometriose vesical é da responsabilidade tanto do urologista quanto do ginecologista, e deve ser baseada em algumas condições como idade da paciente, desejo de gestações, extensão da lesão vesical, importância dos sintomas vesicais, presença de patologia pélvica e gravidade das alterações menstruais (tabela 4)22-28.
O tratamento da endometriose urinária deve ser individualizado. O acometimento da bexiga por adenomiose é freqüente e, nessa situação, a exerése total do nódulo endometriótico, seguida de laparoscopia, pode dispensar terapêutica hormonal complementar. A terapêutica medicamentosa deve ser aplicada nos casos onde não houve extirpação total da doença.
O tratamento clínico pretende criar um meio hormonal pouco favorável para a evolução dos implantes endometrióticos. As primeiras substâncias introduzidas mimetizavam a gestação, onde a anovulação é acompanhada de decidualização do endométrio com sua posterior atrofia.
A endometriose é afecção estrógeno dependente e, portanto, pode ser utilizado qualquer esquema terapêutico que diminua a ação deste hormônio.
O uso do acetato de medroxiprogesterona na dose de 50 a 100mg intramuscular mensal é suficiente para a remissão total da dor. Suas vantagens residem no seu baixo custo e na ausência de efeitos estrogênicos secundários. Os efeitos colaterais dependem da dosagem, da duração, do tratamento e da via de administração. As alterações menstruais são relatadas em 40 a 70% das usuárias. São também descritos náuseas, vômitos, aumento de peso, retenção hídrica, depressão e diminuição da libido nos quais constituem causas importantes de abandono do tratamento.
O danazol, desde sua introdução (1971), tem sido um dos fármacos mais utilizados na endometriose. É um derivado da 17-etiniltestosterona e seu mecanismo inclui um estado de hipoestrogenismo de origem central e periférica. A dose utilizada é de 400 a 800mg diários, induzindo amenorréia. Os efeitos colaterais mais comuns são aumento de peso, cãimbras, mudança de humor, pele oleosa, atrofia mamária e depressão.
O gestrinona induz à redução dos receptores estrogênicos e progestagênicos no endométrio, suprime o pico endógeno de LH e inibe a esteroidogênese ovariana. É utilizada na dose semanal de 5 a 7,5 mg. Pode causar alterações menstruais, queda de cabelo, acne e seborréia. Tanto o gestrinona quanto o danazol devem ser utilizados por seis meses.
Ultimamente, a utilização dos análogos do GnRH para o tratamento da endometriose tem aumentado. Seu uso prolongado causa supressão da função gonadotrófica através do mecanismo de down regulation nos receptores de GnRH da glândula pituitária. A falta da secreção de gonadotropinas e, especialmente, a carência da forma biológica ativa de LH e FSH irão resultar em estado hipoestrogênico22. São utilizados por várias vias de administração (intranasal, subcutânea, intramuscular). Nos tratamentos a longo prazo são preferíveis as formas de depósito. Os efeitos colaterais mais comuns são aqueles ocasionados por hipoestrogenismo. O tratamento além dos seis meses proporciona uma redução significativa da densidade óssea. Dessa forma, a maioria dos autores recomenda a terapia de reposição hormonal coadjuvante utilizando noretindrona ou 17-ß estradiol.
Stanley et al. apresentaram 10 casos de endometriose vesical dos quais sete foram submetidos à cistectomia parcial concomitante ao tratamento supressor de estrógenos, sendo que seis pacientes evoluíram bem. Os três pacientes restantes foram tratados com supressão hormonal apresentando bons resultados23. Lavelle et al. trataram clinicamente uma paciente com obstrução ureteral por endometriose e obtiveram sucesso24. Kistner demonstrou alívio dos sintomas com terapia progestagênica em mais de 80% das mulheres tratadas desta forma, entretanto Andrews acredita que esta terapêutica é paliativa e temporária25,26. Devido às desagradáveis conseqüências da supressão estrogênica, como osteoporose, por exemplo, Foster et al. acreditam que a melhor forma de abordar esta doença é através da cistectomia parcial, seguido de tratamento adjuvante com hormônios, se houverem implantes endometriais remanescentes27. Recentemente, Nezhat et al. descreveram 19 casos de sutura vesical, alguns após ressecção parcial de endometriomas por via laparoscópica. Estes pacientes foram mantidos com sonda vesical por 7-14 dias e apenas uma mulher apresentou fístula vésico-vaginal que necessitou de correção. Todos os outros casos evoluíram satisfatoriamente e o autor concluiu que o tratamento laparoscópico é factível28.
O tratamento de pacientes com endometriose é ainda motivo de discussão. Bons resultados foram obtidos com as várias formas terapêuticas e são defendidos por seus autores. Os casos devem ser analisados em suas particularidades como o tamanho da lesão, severidade dos sintomas, desejo reprodutivo da paciente e aderência ao tratamento.
A forma isolada de acometimento do trato urinário é rara, os ureteres podem estar comprometidos nas formas severas de endometriose pélvica. A bexiga é mais freqüentemente acometida por adenomiose, daí a importância da investigação endoscópica do trato genital superior.
As formas tumorais devem preferencialmente ser tratadas com a combinação de terapêutica cirúrgica e clínica sendo necessária a ressecção do tumor.
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E-mail: hcor@ncor.com.br Artigo recebido: 14/01/2000
Aceito para publicação: 20/04/2000
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